O conflito no Oriente Médio já se estende há quase uma semana com mortes e destruição. Desde o último sábado (7), mais de 3 mil pessoas morreram na guerra, que começou após um ataque do grupo Hamas contra Israel.
Em resposta ao ataque surpresa, Israel anunciou um “cerco total” — deixando sem eletricidade, sem alimentos e sem combustível a população na Faixa de Gaza, território onde vivem 2,5 milhões de palestinos. Nos últimos dias, os bombardeios no território também aumentaram, atingindo até escolas administradas pela Organização das Nações Unidas (ONU). Sem energia, hospitais na região funcionam com geradores.
Enquanto isso, o Hamas mantém como reféns em Gaza mais de 100 pessoas, incluindo civis, que foram sequestradas em território israelense. A comunidade internacional apela para que os reféns sejam libertados.
Em Israel, o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, e o líder da oposição, Benny Gantz, anunciaram nesta quarta-feira (11) a formação de uma coalizão para liderar um governo de emergência.
Para além da posse de reféns e da delicada situação política de Netanyahu, a complexidade do conflito é agravada pela longa ocupação do território palestino por Israel, pela influência e interesse de outros países no Oriente Médio e do passivo histórico da longa disputa por terra na região.
Já são mais de 70 anos sem que a proposta da criação de dois Estados, um judeu e um árabe, tenha se concretizado.
Diante desse cenário desolador, o g1 perguntou a especialistas se é possível imaginar uma solução para o conflito, tanto imediato quanto histórico. A reportagem questionou, ainda, quais seriam as bases de uma solução, por quem ela deveria ser construída e quais fatores atrapalham essa construção.
Foram ouvidos:
- Arlene Clemesha: mestre e doutora em história, é professora de História Árabe na Universidade de São Paulo (USP) e diretora do Centro de Estudos Árabes da mesma universidade.
- Guilherme Casarões: doutor e mestre em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP), é professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e autor do artigo “O lugar de Israel e da Palestina na política externa brasileira”.
- Karina Calandrin: doutora e mestre em relações internacionais pelo programa da Unesp, Unicamp e PUC-SP, é pesquisadora-colaboradora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), professora na Universidade de Sorocaba e colaboradora do Instituto Brasil-Israel. Foi, ainda, pesquisadora visitante na Universidade de Haifa, em Israel.
- Natalia Nahas Calfat: doutora em ciência política pela USP e pós-graduada em relações internacionais na mesma universidade. É diretora do Instituto da Cultura Árabe (Icarabe).
Destruição em Gaza após bombardeio israelense. — Foto: Adel Hana/AP
As bases para estruturar uma solução
Na avaliação de Karina Calandrin e Guilherme Casarões, a solução para o conflito entre Israel e Palestina passa pelo resgate da proposta de criação de dois Estados, um Estado Palestino que existiria ao lado do Estado de Israel.
"Nenhuma outra solução — seja um estado único, seja um estado binacional — consegue contemplar totalmente os anseios de autodeterminação de ambos os povos", diz Calandrin. "E o primeiro passo para isso é o reconhecimento mútuo. Há uma tentativa de deslegitimar os dois lados, tanto a causa palestina quanto a autodeterminação judaica".
Para Arlene Clemesha, a construção de uma solução também passa pelo reconhecimento de uma humanidade comum para ambos os povos — que está "acima de qualquer fórmula possível sobre dois estados ou um estado" —, além da garantia de direitos humanos e direitos civis para os palestinos, que vivem há décadas sob um regime de leis altamente restritivas.
As chamadas leis marciais limitam o direito de ir e vir, a representação política e a liberdade tanto dos palestinos que vivem em Israel (são cerca de 20% da população), quanto daqueles que vivem em territórios ocupados.
"O termo que a comunidade usa para descrever esse estado de coisas é apartheid. O palestino, seja ele muçulmano ou cristão, vive segregado e não é tratado como cidadão", explica ela.
Conflito Israel x Hamas — Foto: Montagem/AP
Segundo Natalia Calfat, as bases para o entendimento entre israelenses e palestinos foram estabelecidas durante os Acordos de Oslo, que acabam de completar 30 anos sem terem sido cumpridos.
Negociados entre Israel e a Organização para a Liberação da Palestina (OLP) entre 1993 e 1995, os acordos determinaram o estabelecimento gradual de um Estado Palestino na Faixa de Gaza e em territórios da Cisjordânia, colocando, ainda, o ano de 1999 como data-limite para o fim da ocupação israelense nessas áreas.
Essa experiência, apesar de ter falhado, demonstra que é sim possível desenhar um acordo com mediação internacional. Segundo Calfat, o combinado terá que passar por mecanismos de engenharia política e, principalmente, de compartilhamento de poder.
"Existem vários exemplos na história e no mundo, uns que funcionaram melhor, outros que funcionaram pior. Há exemplos que endereçam minorias étnicas, religiosas, linguísticas. Irlanda do Norte, Suíça, Holanda até meados do século XX, Líbano e Iraque, Bélgica. Há lições que podem ser aprendidas, ajustadas e ressignificadas. Mas é preciso que se tenha vontade política e que se olhe para as raízes do problema".
?A viabilização da criação do Estado Palestino com manutenção do Estado de Israel precisaria resolver vários empecilhos. Os principais, na visão de Casarões e Calandrin, são:
- Os assentamentos israelenses na Cisjordânia: São mais de 600 mil israelenses vivendo na região nos chamados assentamentos, que, na prática, são cidades em muitos casos bem estruturadas. Essas pessoas precisariam ser retiradas, o que envolveria um enorme esforço político, logístico e econômico.
- O status de Jerusalém: "Israel quer assegurar uma Jerusalém 'una e indivisível' como capital do país, ao passo que a demanda palestina tem sido no sentido de ter ao menos Jerusalém oriental (onde fica a cidade antiga, lugar sagrado para o islã, para o judaísmo e até mesmo para o cristianismo) sob seu controle", explica o professor da FGV. Calandrin lembra que, em uma cúpula de 2000, foram os israelenses que propuseram divisão da cidade.
Há ainda a questão dos refugiados palestinos, expulsos das áreas que hoje configuram Israel em 1948, ano que o país foi criado. A expulsão, designada pela palavra árabe "Nakba", que significa catástrofe, levou ao deslocamento forçado de centenas de milhares de árabes palestinos --alguns estão vivos até hoje, outros deixaram descendentes que, para a ONU, também são refugiados.
"Essas pessoas nunca puderam retornar. Várias pesquisas mostram que nem todos gostariam de voltar para suas terras de origem, mas ao menos poder visitá-las", explica Clemesha. "Essa questão não pode ser resolvida na configuração dos dois estados, mas sim na de um estado único, em que judeus e palestinos teriam seus direitos respeitados, afinal, ninguém vai depender que judeus saiam hoje desses territórios, eles estão lá há 75 anos, já estão estabelecidos".
Karina Calandrin levanta ainda outro problema: o que fazer com o Hamas, grupo armado, terrorista e antissemita que não aceita negociar com Israel.
"O Hamas não quer um estado palestino ao lado do estado israelense, e nem aceitaria sentar para negociar com Israel, então como lidar com isso?", questiona, deixando a resposta no ar.
Quais atores deveriam participar da construção de uma solução
Acordos de Oslo completam 30 anos sem concretizar a paz prometida no Oriente Médio. Na imagem, aparecem o então presidente dos EUA, Bill Clinton, o primeiro-ministro israelense, Yitzhak Rabin, e o líder da Organização da Libertação da Palestina, Yasser Arafat. — Foto: Reprodução/TV Globo
"Aí que começa o problema", diz Casarões, partindo da premissa que qualquer solução passa por Israel e pelas lideranças palestinas.
Ele explica: hoje, do lado palestino, há, na prática, dois governos: o do Hamas, na Faixa de Gaza, e o do Fatah, mais moderado, por meio da Autoridade Palestina, na Cisjordânia.
"Israel não reconhece o Hamas como interlocutor desse processo e isso, compreensivelmente, limita as possibilidades de diálogo legítimo que contemple os interesses do povo palestino", afirma o professor.
Arlene Clemesha, da USP, considera que a cisão da representação palestina é de responsabilidade internacional. Ela lembra que, em 2006, quando o Hamas superou o Fatah e venceu as eleições parlamentares, o resultado foi boicotado pela comunidade internacional.
Já o mandato do atual presidente palestino, Mahmoud Abbas, expirou em 2009, mas ele, que tem um quadro de saúde debilitado, segue governando por decretos. Já Marwan Barghouti, liderança popular do Fatah, considerado como alguém capaz de unificar a representação palestina, está preso desde 2002 por Israel, sob a acusação de terrorismo.
Em setembro de 2022, uma pesquisa do Arab Barometer, mostrou que 26% dos palestinos achavam que o Fatah, sob o presidente Abbas, merecia representar e liderar o povo palestino, enquanto 27% diziam ser o Hamas. A maioria, 42%, considerava que nenhum dos dois merecia esse papel.
"Além desses dois atores centrais [Israel e lideranças palestinas], podemos considerar que países da região possuem alguma ascendência sobre as lideranças palestinas. Turquia, Catar e Egito, por exemplo, possuem canais de diálogo com o Hamas. Jordânia e Arábia Saudita, por sua vez, já participaram historicamente de planos de paz entre Israel e Palestina", diz Casarões.
Para Karina Calandrin, além de aliados dos palestinos, uma mesa de negociação precisaria contar com aliados de Israel, como os Estados Unidos. Também seria crucial a presença de países neutros, papel desempenhado pela Noruega nas negociações dos Acordos de Oslo.
Drone mostra como ficou rave atacada pelo Hamas — Foto: Reuters
Fatores que atrapalham a construção de soluções
Os especialistas consultados avaliam que as crises políticas, tanto da liderança palestina, quanto de Israel, atrapalham qualquer possibilidade de negociação.
"Temos uma crise prolongada de liderança palestina, que se revela tanto na fraqueza da Autoridade Palestina, governada há duas décadas por Mahmoud Abbas, quanto na força do Hamas e de outros grupos extremistas, que oferecem uma solução para a questão por meio da violência e do terrorismo", explica Guilherme Casarões.
Do lado israelense, a fragmentação política e a fragilidade das alianças parlamentares vem tornando governos reféns de grupos minoritários fundamentalistas, contrários a qualquer negociação com os palestinos, segundo o professor.
Depois do ataque, o apoio israelense ao governo do premiê Benjamin Netanyahu despencou. Um dos principais jornais de Israel, o Haaretz, publicou um editorial no qual afirma que Bibi, como é conhecido, é o culpado pela guerra.
"Netanyahu trabalhou muito para o enfraquecimento do Fatah, o que fortaleceu o Hamas", afirma Karina Calandrin.
"Não vejo como Netanyahu poderia construir a paz, seria necessária uma liderança mais moderada, que realmente se importe com o processo de paz, o que ele fez foi empurrar esse problema cada vez mais para frente, até que ele ficasse 'too big to fail', ou, no caso, grande demais para ser resolvido", diz ela.
Na avaliação de Arlene Clemesha, o principal fator dificultador é o apoio incondicional dos Estados Unidos a Israel.
"Israel já tem um poderio militar que dificulta muito criar qualquer equilíbrio entre as forças, porque uma boa negociação só acontece entre duas partes com poder mais ou menos equilibrado", diz ela. O envolvimento americano pende essa balança ainda mais para o lado de Israel.
A professora da USP também cita a estrutura do Conselho de Segurança da ONU, em que o poder de veto inviabiliza qualquer resolução favorável à causa palestina. Diferentemente do que acontece na plenária da ONU, que costuma votar resoluções favoráveis aos palestinos.
A fragilidade da economia palestina, dependente de ajuda internacional e pouco autônoma, também é apontada como um grande empecilho.
"Enquanto não se endereçar o aprisionamento de presos políticos palestinos, o congelamento dos fundos palestinos, a condição socioeconômica muito precária em Gaza e a expansão contínua dos assentamentos israelenses, não há solução permanente possível", resume Natalia Calfat.
O que é preciso ser feito no curto prazo
A resposta, unânime, é a óbvia: o estabelecimento imediato de um cessar-fogo, que acabe com o derramamento de sangue e com a violência.
Os especialistas dizem que é necessário estabelecer corredores humanitários e garantir o resgate de reféns.
"No mais curto prazo, as soluções passariam pelo fim da violência e pela retomada (formal) das negociações de paz", diz Guilherme Casarões. "Ambos os objetivos são difíceis hoje".
"São dois povos com duas histórias que precisam ser mantidas e respeitadas e com direitos que precisam ser igualmente garantidos", afirma Calfat.