Cerca de 30 minutos a pé, até a parada improvisada em frente ao supermercado no trecho 3 do Sol Nascente, mais 1h entre o tempo de espera pelo ônibus e o trajeto até o Hospital Regional de Ceilândia (HRC). Ao todo, as mães que moram na região da Fazendinha, no Sol Nascente, levam 1h30 para conseguir atendimento médico de urgência para os filhos.
O Sol Nascente é, segundo o IBGE, a maior favela do Brasil. Em 2022, a prévia do Censo mostrou que a comunidade do Distrito Federal, que fica a 30 quilômetros da Praça dos Três Poderes, superou a Rocinha em número de domicílios.
A pesquisa mostrou que o Sol Nascente tem 32.081 domicílios, enquanto a Rocinha, no Rio de Janeiro, tem 30.955. Mas, mesmo com uma população tão grande, a favela brasiliense tem apenas uma Unidade Básica de Saúde (UBS) – um problema e tanto para as famílias.
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Com 3 anos, Ashley teve uma pneumonia. Depois de 2 meses internada no Hospital Regional de Ceilândia, a menina sobreviveu. No entanto, voltou para casa, no trecho 3 do Sol Nascente, com a descoberta de que tem microcefalia.
Atualmente, aos 12 anos, a menina precisa do cuidado integral da mãe, Emily Gabriely Zacarias Alves. A alimentação da Ashley, por exemplo, é feita por meio de uma sonda, seis vezes ao dia.
Emily, de 28 anos, tem outros cinco filhos, com idades entre 1 e 14 anos. Ela conta que não consegue ir às consultas para o tratamento de Ashley no Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB), pois não tem carro e a viagem até o local leva cerca de 2h30, entre o percurso a pé e de ônibus.
"Eram quatro consultas por mês, mas não tem como remarcar para eu não ir, porque a distância é longa. Agora começou o tratamento domiciliar, fizeram entrevista comigo e elas vêm de vez em quando. Não é direto, é mais quando é preciso", diz a mãe.
Veja as distâncias percorridas pelas mães da Fazendinha em busca de atendimento médico para os filhos
Trajetos que a Emily faz para levar os filhos até o hospital mais próximo. — Foto: Bárbara Miranda, Verônica Medeiros e Vitória Romero/Arte g1
A Unidade Básica de Saúde 16 (UBS 16), que fica no trecho 1 do Sol Nascente, tem quatro equipes de Saúde da Família. Cada equipe de Estratégia Saúde da Família atende 4 mil habitantes de um território.
Emily conta que quando os outros filhos precisam de atendimento médico, Ashley fica aos cuidados da sogra, que é sua vizinha. Aí, ela precisa fazer o trajeto de 1h30 até o Hospital Regional de Ceilândia, ou andar 2,5 km na estrada de terra até a Unidade Básica de Saúde 15, de Ceilândia – que para ela é um pouco mais perto que a UBS 16, do Sol Nascente.
De acordo com a Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES-DF), para conseguir atender toda a população do Sol Nascente, a região precisaria de ao menos 19 equipes de Saúde da Família e da construção de 5 Unidades Básicas de Saúde.
Na área Oeste de Saúde do DF, o Sol Nascente é a região com a menor cobertura de Saúde da Família, sendo apenas 17%, segundo a pasta. As Unidades Básicas de Saúde UBS 1, UBS 15, UBS 17 e UBS 18 também atendem o Sol Nascente, mas elas ficam em Ceilândia.
De acordo com a pesquisa "Desenvolvimento infantil e parentalidades no Distrito Federal", de 2023, do Instituto de Pesquisa e Estatística do DF (IPEDF), enquanto 82,1% das crianças de regiões administrativas de renda alta estavam com consultas agendadas no momento das entrevistas, nas regiões de renda baixa o percentual era de 53,5%.
Os dados mostram que a proporção de crianças com algum problema de saúde é maior entre aquelas residentes nas regiões administrativas do grupo de renda média-baixa (19,4%), que no grupo de renda alta (14,3%) e média-alta (13%).
Cortes no Bolsa família e Benefício de Prestação Continuada (BPC)
Emily Gabriely Zacarias Alves e a filha Helloa Vitória na rua onde moram no trecho 3 do Sol Nascente. — Foto: Fernanda Bastos/g1 DF
Além da dificuldade de acesso à saúde, Emily explica que ficou um ano sem receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que é a garantia de um salário mínimo (R$ 1.302) por mês para pessoas com deficiência, em qualquer idade. O auxílio voltou a cair na conta da mãe, que também é beneficiária do Bolsa Família, em abril de 2023.
A Secretaria de Desenvolvimento Social do DF diz que cerca de 1.000 famílias do Sol Nascente não recebem nenhum tipo de auxílio do governo federal nem do distrital. No entanto, 4.696 famílias dessa região, com crianças na faixa etária da primeira infância, estão inscritas no Cadastro Único (CadÚnico).
No total, 3.170 famílias com crianças de 0 a 6 anos no Sol Nascente recebem algum tipo de benefício socioassistencial. Em relação às famílias formadas por mães solo com crianças nessa faixa etária são 2.434 famílias.
A média do valor do benefício recebido por cada uma delas é de R$ 703,67, segundo a Secretaria de Desenvolvimento Social do DF.
Rumo ao Hospital Regional de Ceilândia
Bruna Nascimento dos Santos e a filha Aylla em frente à casa onde moram no trecho 3 do Sol Nascente. — Foto: Fernanda Bastos/g1 DF
Em uma das visitas à Ashley, na casa de Emily, a equipe de Saúde também visitou a bebê da vizinha, Bruna Nascimento dos Santos. A jovem de 22 anos, que tem outra filha de 4 anos, tinha voltado do hospital há poucos dias, após dar à luz Aylla.
“Três dias depois que nasceu, ela já demonstrou que estava cansadinha, porque aqui a poeira não tem fim. A gente tenta jogar água aqui na frente, mas não consegue. [...] As agentes viram a bebê e encaminharam para o postinho, fui de van com elas”, conta Bruna.
Na UBS, o encaminhamento foi para o Hospital Regional de Ceilândia (HRC). Aylla ficou 20 dias internada e o diagnóstico foi de bronquiolite.
"O médico disse que foi por causa da poeira, a poeira faz a criança ficar com falta de ar", diz a mãe, que de 30 em 30 minutos trata a bebê, atualmente com dois meses, com limpeza nasal com soro e também faz nebulização. "Não pode faltar um soro e nem uma seringa", diz Bruna.
Atendimento centralizado no hospital
Segundo a Secretaria de Saúde do Distrito Federal, o HRC atendeu, de maio a julho, 1.088 crianças na pediatria que tinham endereço no Sol Nascente. Confira abaixo os dados:
Número de crianças atendidas na pediatria do Hospital Regional de Ceilândia. — Foto: Bárbara Miranda, Verônica Medeiros e Vitória Romero/Arte g1
A pediatra do Hospital Regional de Ceilândia (HRC) Andrea Nogueira destaca que, segundo as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS), a porta de entrada do sistema de saúde tem que ser a atenção primária. Mas, uma vez que isso não ocorre, como no caso do Sol Nascente, o modelo se torna centrado em ações hospitalares e é desfavorável para a saúde das pessoas.
"O hospital tem um treinamento para cuidar das doenças. Mas, antes disso, é preciso que se promova a saúde. Se não existe cobertura adequada no território as pessoas migram para os hospitais, porque é onde podem ter acesso a algum atendimento”, diz a pediatra.
Segundo a médica, das famílias com crianças que chegam aos hospitais buscando um atendimento para um problema grave, mais de 60% são uma demanda que não precisaria estar no hospital.
"É uma demanda que é mal acolhida. Ela é acolhida, mas não com o olhar que precisaria, porque ela tá no ponto da rede que não é o mais apropriado para aquela demanda. O grande desafio do Sistema de Saúde é assegurar cobertura de atenção primária para que seja a porta de entrada e o sistema se ordene pela atenção primária. Não havendo essa cobertura, haverá fila nos hospitais”, afirma.
Saúde na primeira infância e desnutrição infantil no DF
Pediatra no Hospital Regional de Ceilândia Andrea Nogueira. — Foto: Fernanda Bastos/g1 DF
A pediatra Andrea Nogueira diz que o debate sobre saúde começa bem antes da porta dos hospitais e das unidades de saúde. A médica, que também é integrante da Sociedade de Pediatria do Distrito Federal, diz que ter boa saúde não é somente ter acesso às vacinas, aos medicamentos em caso de adoecimento.
“A saúde vem antes disso, pelas condições de contexto: vida social, vida familiar, suporte para os estresses psicossociais. E, claro, passa pelo básico: o que é mais básico do que a questão do asfalto e a questão da poeira – mais básico que isso é água de qualidade”, diz.
A médica explica que em uma região urbana, quando não há infraestrutura de asfalto, normalmente também falta uma infraestrutura mais básica que é a água de qualidade. "Se a família não dispõe de água tratada, e o bebê recém-nascido não mama o seio materno, para se preparar uma fórmula artificial, vai se usar uma água que não é de qualidade. Isso é veículo de adoecimento, as viroses intestinais e respiratórias", aponta a pediatra.
Andrea lembra que este é o cenário do Brasil de 30 anos atrás, que foi o começo da sua carreira como pediatra, quando os médicos eram convocados para cuidar de crianças que morriam por causas evitáveis relacionadas à pobreza. As mortes eram por diarreia, por desnutrição e por doenças respiratórias como pneumonia.
“Com o passar do tempo, com as políticas públicas mudou o cenário. Mas, toda vez que existe crise social, desigualdade social e crise econômica, os mais frágeis são os mais afetados primeiro: as crianças e os mais idosos. Agora, no cenário da minha prática e em conversas com os colegas, a gente vê que voltam a existir crianças com desnutrição primária por falta de acesso à alimentação, por insegurança alimentar”, diz a pediatra.
Em 2022, o número de crianças internadas por desnutrição no DF foi o mais alto em 10 anos, foram 141 internações de crianças com menos de 5 anos, segundo o levantamento da Sociedade Brasileira de Pediatria.
De 2018 para 2022, as internações infantis por desnutrição no DF cresceram 110% (veja no gráfico abaixo).
Número de crianças menos de 5 anos internadas por desnutrição infantil no DF. — Foto: Bárbara Miranda, Verônica Medeiros e Vitória Romero/Arte g1
Segundo a pediatra do HRC, os efeitos da desnutrição infantil podem ser de diferentes gravidades e de curto e longo prazo. "Os efeitos mais graves são a morte e, para crianças que a desnutrição não leva à morte, podem ter problemas de crescimento, de imunidade, do desenvolvimento motor, da motricidade fina e do desenvolvimento cognitivo", diz.
Diabetes e doenças cardiovasculares são outras possíveis consequências da desnutrição na infância.
“Acho que a gente sonha que o progresso é linear, mas ele não é. Mas algumas coisas são pactos sociais que não poderiam mais ser descumpridos”, diz Andrea Nogueira.
De acordo com a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) de 2021, cerca de 49,8% dos domicílios da região do Sol Nascente enfrentam insegurança alimentar leve, moderada ou grave.
- Insegurança Alimentar leve: Preocupação ou incerteza quanto acesso aos alimentos no futuro; qualidade inadequada dos alimentos resultante de estratégias que visam não comprometer a quantidade de alimentos;
- Insegurança Alimentar Moderada: Redução quantitativa de alimentos entre os adultos e/ou ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre os adultos;
- Insegurança alimentar grave: Redução quantitativa de alimentos também entre as crianças, ou seja, ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre todos os moradores, incluindo as crianças. Nessa situação, a fome passa a ser uma experiência vivida no domicílio.
A desigualdade social repercute diretamente nos indicadores de saúde da população negra, mais vulnerável a uma série de agravos e doenças, quando comparada com a população branca, segundo dados do Ministério da Saúde. De acordo com a pasta:
- O risco de uma criança preta ou parda morrer antes dos cinco anos por causas infecciosas e parasitárias é 60% maior do que o de uma criança branca
- O risco de morte por desnutrição apresenta diferenças alarmantes, sendo 90% maior entre crianças pretas e pardas do que entre brancas
Saúde mental das mães
Além de soluções para que as dificuldades no acesso à saúde sejam superadas, é preciso um olhar atento para as mulheres que têm filhos. No Distrito Federal, a mãe foi apontada como a principal cuidadora em 71,6% dos domicílios, segundo pesquisa de 2023 do IPEDF.
Os dados apontam que entre as crianças de 0 a 6 anos, 96,3% moram com a mãe no mesmo domicílio e 69,1%, com o pai.
Em relação a como se sentem os cuidadores/as do DF, 64,5% afirmam que muitas vezes/ sempre se sentem tensos quando a criança está longe, seguido pelo sentimento de que deveriam estar fazendo mais pela criança (49,1%), que poderia cuidar melhor da criança (44,6%) e outros 41,9% que indicaram que sentem como se fossem a única pessoa que a criança pode contar.
Com três meses de duração, o projeto de roda de conversas, voltado para a saúde mental dessas cuidadoras, começou a ser realizado com as mães do trecho 3 do Sol Nascente. Cerca de 20 a 30 mulheres se reúnem na casa de uma delas e o primeiro passo é escutar uma música.
Depois, as mães, de diferentes idades, analisam a letra e tentam trazer para sua realidade, contando histórias e vivências. Gecinéia de Lima e Silva, uma das coordenadoras da roda, diz que, durante os três meses de partilha, ouviu muitas histórias de abuso e de violência.
“Do relacionamento com o marido, uma espécie de domínio. Dentro da situação que costumam viver no seu espaço quanto família, é também a violência psicológica. [...] São mulheres que sempre vivem um abuso e não percebem que vivem. Não são todas, mas boa parte das mulheres, e a roda de conversa possibilita que depois elas busquem ajuda”, diz Gecinéia.
Além da violência doméstica e de abusos psicológicos, algumas das mulheres enfrentam a violência sexual, não só delas, mas, algumas vezes, dos filhos também. "Às vezes acontece por detrás, velado, às vezes há abuso sexual com crianças e adolescentes. A gente já teve algumas procuras nesse sentido", conta.
A psicóloga com mestrado em Psicologia do Desenvolvimento Juliana Prates, destaca que a questão da dupla vulnerabilidade se faz presente em muitas infâncias. "As crianças são expostas aos riscos e podem ser vítimas, como são dependentes de alguém que também pode ser vítima desses desastres sociais", diz. Para a psicóloga, é preciso cuidar de quem cuida e apoiar essas mães e cuidadoras.
Psicanalistas, terapeutas ocupacionais e estudantes do último período de Psicologia da Universidade Católica de Brasília (UCB) começaram a visitar as rodas de conversa há cerca de um mês. O formato de atendimento ainda está sendo definido pelos grupos.
"Às vezes a pessoa está tão sufocada que não consegue falar. Algumas mulheres já pensaram e outras tentaram suicídio", diz a coordenadora da iniciativa. No entanto, Gecinéia acredita que a roda de conversa, aliada ao tratamento psicológico e psiquiátrico, pode ser uma rede de apoio para as mulheres da região.
"Eu sinto que elas se sentem apoiadas entre elas. Isso é muito bom, criou confiança. Então, há uma confiança no grupo ,e uma confiança com as pessoas que vem ao encontro", diz.
Escute o áudio de Cristina uma das participantes da roda de conversa que fala como ela se sente:
Esta reportagem recebeu apoio do programa “Early Childhood Reporting Fellowship”, do The Dart Center for Journalism and Trauma, da Columbia University.